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percursos

imaginários

Ele era lindo.

O fitei durante todo o percurso do coletivo. Seus olhos expressivos cruzaram os meus duas ou três vezes. Tive medo de encarar. Ele subiu e ficou quieto. Parado entre a catraca amarelo ouro -  a cor do elo. Tentei disfarçar, mas não deu: ele era o meu ponto de visão. Gostava disso.

A cada volta, o coletivo balança; e eu via – no balanço do amor – a oportunidade de olhá-lo mais uma vez. Homem. Magro. Alto. Barba e bigode. Parecia meio atlético, sei lá, basquetebol.  Eu o queria puramente. Não deu. Quase deixo a parada passar.

 

Desci.

038

FORTALEZA, CEARÁ

Fortaleza são paredes. Algo que te protege e te fortalece. Que reúne dentro. Que cerca por completo. Mas será isso? O cotidiano que te beija como símbolo de traição: o afeto fora roubado. A liquidez das relações. Perseguições. A frieza dos medos e a angústia da insegurança. A persistência de tentar de novo. Rumos, caminhos e percursos. O coletivo. A vida em sociedade tende a ser restritamente coletiva. Não se vive sem o outro. Não existe nós sem o outro.

Nó.

 

Mas, quem é o outro além de mim? Na angustia e no medo, o amor te fortalece. Teu combustível diário: pai, filho, irmão, primos, amigos, vizinho... se for elencar os detentores do meu amor, preciso de no mínimo três folhas. Compaixão e empatia é o que nos move. Pelo menos deveria.

 

Nesse fantástico fantasioso, têm-se o coletivo diário, o frio do ar-condicionado, os transeuntes e suas sutis indelicadezas – frieza –, e o amor, como num elo entre o azul e o amarelo que o Leminski um dia me falou.

Como cenário

para construção da narrativa-imagética, elegi a linha de ônibus 038, que é um dos coletivos que tem me levado para vários lugares desde que vim morar em Fortaleza. Já fazem quase cinco anos que circulo pela capital, terminal à terminal, seja sentado nas cadeiras, ou exprimido de pé, no 038. Acompanhei toda a mudança de carros, agora com ar-condicionado e rede WiFi. Durante esses quase cinco anos, dividi esse transporte coletivo com mais de 10 mil pessoas que já cruzaram comigo durante as minhas viagens diárias.

 

Pontualmente, durante toda a semana, devido à faculdade, pego o transporte no mínimo duas vezes: ida e volta. Nesses percursos, observo os transeuntes das mais variadas idades, e, enquanto espero o meu distinto destino chegar, vou percebendo as relações construídas no mini mundo coletivo – dentro do transporte –, mas, mais além, muitas vezes, em algumas situações corriqueiras, percebo o mundo exterior – fora do ônibus – interagindo com os passageiros durante a viagem, seja com o rapaz da água, com os pedintes, ou quando cruzamos algum acidente visto ás pressas pela janela.

 

A proposta estético-imagética trata-se de uma narrativa fotográfica em cores fundamentadas em um breve poema do Paulo Leminski “amar é um elo entre o azul e o amarelo”.

 

Poderia ser o céu e o sol, mestres do dia-a-dia, grande fonte de vida assim como o amor.

 

Nessa perspectiva narrativa, as fotografias foram editadas em ciano (tons de azul) e o amarelidão do 038 foi destacado.

Os canos de ligação – percebo: o amor precisa ser canalizado – que dão sustentação às pessoas que seguem o percurso em pé no ônibus são amarelos, cor do elo. Logo, esse jogo de duas cores evidenciam o poema de Leminski e irão esboçar, em cores, a proposta de discutir o cotidiano e as individualidades do ser social da grande Fortaleza dentro desse coletivo, além, claro, do amor, a liga de todas as relações. Crônicas ilustram a narrativa visual e dão suporte ao imaginário. 

 CRÔNICA 

Apanhado; quatro amigos, dois homens e duas mulheres, organizam-se no interior de um ônibus suavemente condicionado, cujo o percurso é ligar dois extremos. Entre os papos do quarteto, aprofunda-se uma discussão acerca de uma moça que se equilibra em uma espécie de corda bamba improvisada em um dos sinais visto durante o intermediário do coletivo.

 

9:30 da manhã de quinta-feira qualquer...
Entre os questionamentos, uma dúvida sobre a nomeação dessa atividade é levantada: um dos garotos diz se tratar de um slackline "uma corda que a gente anda e pula", comenta ele.

Uma das garotas - astuta - diz que a moça está andando por uma corda mesmo; do tipo corda de verdade. Muitos questionamentos são levantados acerca do misterioso objeto. Depois de cruzado o sinal - discussão estreitada - conclui-se que de fato se trata de uma corda 'qualquer' (corda de amarrar rede)... não um slackline como fora dito antes por um dos garotos.

 

Dado um tempinho, a segunda garota que apenas ouvia a discussão entre os dois colegas, inicia uma nova confabulação: hoje é dia de ir ao cinema [...] mas o que deveríamos assistir? A Mulher Maravilha é muito chato. "Demora demais", reclama. A outra garota, que antes estava empenhada na solução do enigmático objeto visto alguns sinais vermelhos atrás, observa; atenta ao convite da amiga. Todos se silenciam. Ela conclui: deveríamos assistir aquele outro... Pirata... e o quarto interlocutor completa: Piratas do Caribe.
Sim, esse!

sempre 038

por Ícaro Machado

 CRÔNICA 

Desconhecidos, como de costume, sentados, cada um em sua individualidade. Os nossos egos não davam espaço para o outro: a barreira fora construída quando você decidiu sentar ao meu lado. Ônibus estava vazio. Não entendi ao certo por que insistia em fingir que éramos amantes, ou pior, namorados. Estava tão gelado quanto as relações fortalezenses. Mas é que agora algumas frotas de ônibus da capital têm ar-condicionado de verdade. Deixa tudo sempre muito frio. 
 

Transito seguia pela noite tranquilo. o motorista guiava o percurso habitual. Trivialidades. Mesmo vedando-lhe os olhos, ele chegaria ao certo, no ponto, ao terminal do Papicu. Estava maquinizado. As vezes sorria. As vezes permanecia calado. Talvez, quem sabe, até me conhecesse. Esse percurso era tanto para mim, como para ele, um caminho marcado.  
 

Foi então que em uma curva - balanço que deu - quando os nossos corpos se tocaram em um breve movimento de pernas na tentativa de se esguiar um do outro - reverso balanço do amor – foi nessa impulsa cinesia que o desejei. Arrepiei todo na hora. Tocava The Kilers no meu fone, e você acabara de colocar o seu. E nesse instante que só consegui pensar em uma coisa: o que será que tocava no seu ouvido quando o meu corpo saiu de encontro ao teu?  

 dos problemas práticos da vida. 

 espera-se por tudo: 

 pro dia nascer, 

 pela água ferver, 

 pela neve

(esta que ainda morro   sem saber como é) 

 espera-se o ônibus na parada.

 espera-se a parada certa no ônibus.

 espera-se nascer...

 ...espera-se morrer.  

 espera-se a foto fotografada 

 a luz sequenciada 

 a vida banalizada 

 tão 

 passada

 perdida

 jogada

 que não volta mais

 que não se quer voltar

 - não se volta por que foi bom?

 saberá

 ela passou e a gente nem viu

 as vezes só sentiu

 as vezes nem isso

 é melhor nem dizer

 "deixa eu viver, deixa eu viver..."

 das esperas da vida,

o que mais importa é o que você faz quando está esperando.

AMAR

É UM ELO

ENTRE

0 AZUL

E O AMARELO

LEMINSKI

A MULTIDÃO USA JEANS AZUL BÁSICO

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