CRONICA
Hoje é dia de lavar a ala
30 de maio de 2018, ás 00:11 - Fortaleza, Ceará
Na Nogueira Acióli, 440, que é onde eu moro aqui em Fortaleza, os moradores se mobilizam, todos organizados pela líder de ala, por meio de uma lista nominal seguida do número de seu quarto. Nela, quem e quando a ala deve ser lavada, estão pré-estabelecidos por ordem alfabética, seguindo a numeração dos quartos e sempre com intervalos de dias intercalados entre os residentes da ala em questão. Prioriza-se por compromisso e organização
Agorinha, na Casa do Estudante, o sorteado do dia começou a encher os baldes na pia para agilizar a limpeza da ala. Que por sinal, se tratava da minha. Pude ouvir ainda do quarto, o som de água corrente batendo latente no fundo do balde-verde-lodo-apático. Meu dormitório fica estrategicamente pensado — sorte que tive. Tem um banheiro e uma pia quase ao lado.
Das situações, me parece que algo não deu muito bom. Passados alguns minutos, ouvi minha segunda vizinha ao telefone. Parecia aflita ao falar com o seu pai. Mesmo de longe — tanto ele como eu — aos poucos, as suas palavras se tornaram cada vez mais audíveis. Seu tom de voz estrondava, tratava-se de desespero e aflição:
— Ele não pode aceitar? - indagou a minha vizinha.
Parecia-me que o seu pai a questionava sobre algo que a deixou bem nervosa. Não resisti. Abri a porta e fui escovar os dentes. Parece besteira, mas sempre funciona. No mais, ninguém iria notar a minha presença: o menino esfregava, às pressas, o sabão que havia jogado para lavar o chão da nossa ala; e a vizinha rangia vorazmente os dentes.
Não sei se já cheguei a comentar aqui, mas um truque que uso para lavar a ala é colocar pouco sabão. Por que, quanto mais sabão você colocar, mais água pega pra largar.
Agora, voltando para estratégia em questão, quando finalmente sai para escovar os dentes, colocando em ação o plano de ação, tive um desencontro com a situação — deu ruim —, a minha vizinha se movimentou para o lado oposto de minha curiosidade.
Cada vez mais distante, o som de sua voz fugiu de mim, como um eco que corre pela praia e não se repete mais. Lembro que era algo sobre violência e opressão. Umas coisas sobre medos e situações banais. Mas confesso: não consegui ouvir nada além da palavra intervenção.
Cuspido a pasta na pia, saco minhas mãos e as fricciono sobre a água fria corrente da torneira plástica como em forma de uma de tupperware amarronzada feita à mão, minha obra permite-me colher água fria, depois, sem coreografia, a lanço sobre o rosto em tentativa de lavar a cara já tão desgastada de um dia de aula na faculdade de comunicação.
Nesse metódico movimento, percebo que a minha vizinha se aproxima de mim, agora com alguns números em mãos:
"0,46 centavos, pai. Será que isso vai empobrecer ele? Ele disse que a dívida da gente já tá na casa dos 10 bilhões".
Será que ela ouviu os sorrisos que dei? Sim, estavam falando da greve dos caminhões.
De alma, boca e cara lavadas. Fui de encontro ao meu quarto. Mas não pude deixar de perceber: parece-me que o menino vai ter que jogar mais uns dois baldes de água. Tem muito sabão no chão. Ainda bem que eu dei sorte, só lavo a ala no dia 27 de junho, dia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro ou seria da Conceição?